quarta-feira, 29 de agosto de 2012

De rosa para cerejeira - Um pedido pós censura

Que você possa sorrir sempre. Digo isso rezando, porque espero que você nunca possa sentir a responsabilidade da censura que você me impôs, tirando suas próprias conclusões e metendo o dedo numa ferida quase cicatrizada. Mas você não sabe nada sobre mim, não podia adivinhar. Você só pensou em você e continue assim, porque eu sei me virar sozinha.
Eu ainda rezo para que você não sofra, nem chore e que a vida não queira que você limpe com as suas lágrimas a bagunça que me fez fazer com as minhas.
As pessoas não passam impunes, eu sei bem disso, paguei pela censura que você me impôs e lá se foi metade do meu arsenal de textos que eu tanto gostava, não porque os textos remetiam a alguém, mas quando a gente escreve, não interesse pra quem está escrevendo e sim que escreveu. Aquilo que a gente escreve vira um pedaço da gente em letras, pedaço da nossa história, da nossa vida e eu fui amputada por você. Eu amputei tantos pedaços meus em respeito a você, que eu não conheço, porque eu quero que você seja feliz. Mas não existe vítima nem algoz quando se trata de sentimentos.
E por falar em sentimentos, que Deus conserve esse sentimento lindo que você deve ter pra sempre, porque quebrar a cara depois de abalar tanto a vida das pessoas a sua volta, e de pessoas que, como eu, você mal conhece e mesmo assim, mexeu na vida, poderia ser doloroso.
Não ache que sou irônica, que esse texto é uma afronta, nada disso.
O que deixo aqui é minha sincera vontade de que, mesmo tendo minhas razões para não querer que nada de bom aconteça na sua vida, eu espero mesmo que você seja feliz.
Porque você precisa ser feliz. Todos precisamos. Mas você precisa mais que eu e precisa mais de alguém que a faça feliz.
A vida me deu uma dose extra de qualquer coisa que eu não sei o que, que me mantém firme. Porque se eu não fosse firme, teria sucumbido há tempos. Se eu não tivesse essa força, essa luz que brilha e me guia eu estaria visivelmente arrasada por ter sido censurada, isso mesmo, porque o que você fez, mesmo sem querer ou não, foi censura.
Eu aprendi pelo sofrimento e pela dor que nosso Calvário é solitário, por mais que estejamos rodeados de pessoas que nos amem. Pessoas como você tem mais sorte porque podem se apoiar e seguir amparadas, como você está no momento. Talvez mereçam mais essa proteção. Eu tive que aprender a caminhar sozinha.
Se eu não me fizesse forte todos os dias, se não tivesse aprendido a enxugar minhas próprias lágrimas, hoje, talvez, odiasse você. Mas eu quero que você seja feliz, porque você precisa de alguém que cuide de você.
Não estou te criticando por ter alguém que enxugue suas lágrimas, pelo contrário. Você tem sorte por isso e deve agradecer.
Mas se eu, muito embora você não queira nada que venha de mim, pudesse lhe pedir algo é: me deixa em paz.
Não aparece mais aqui, não leia mais o que eu escrevo. Se você já revirou o suficiente esse meu espaço, você vai ver que sua censura funcionou e não tem nada mais que possa ferir o seu ego ou seu romance aqui. Você não foi a primeira a me censurar mas foi a primeira censura que eu acatei. Talvez por sentir de alguma forma que você precisa muito ser feliz. Precisa mais do que eu, porque nem eu quero que você aprenda a conviver com a tristeza, é muito ruim e não desejo isso pra você, nem pra ninguém.
Então, se você tem um pouco de compaixão, esqueça que eu existo e que eu existi um dia na sua vida. Esqueça esse endereço eletrônico porque não há mais nada que lhe diga respeito aqui depois dessas últimas palavras que lhe escrevo. Você conseguiu o que queria, agora pronto, me deixa em paz. Porque senão, qualquer conto medíocre que eu venha a escrever aqui sobre qualquer coisa ou pessoa, vai ser uma pulga atrás da orelha da sua intuição e eu não suporto viver sob censura. Isso aniquila a vontade, o ar e a magia de quem escreve.
 Então, a minha parte eu fiz, faça a sua e nunca mais, mas nunca mais mesmo, volte aqui. Eu lhe dei minha palavra por ações. Eu espero o mesmo de você. No mais, seja feliz, é só o que posso lhe desejar.

sábado, 25 de agosto de 2012

Desabafo de um sábado

Tava pensando nesse meu jeito de ser, pensando na forma que eu me percebo aqui. Gabriela, 20, habitante desse imenso planeta e um cisquinho de nada nesse Universo estrelado e místico.
Não sei, mas agora que comecei a encaixar as peças do meu quebra cabeça sinto uma grande responsabilidade em mim. Sinto que sou responsável por fazer alguma coisa mais concreta do que tudo que já fiz, se é que posso dizer que fiz alguma coisa, né.
Talvez eu não chegue a descobrir a cura pro câncer, eu nem estou estudando para isso, mas eu preciso deixar uma marca minha aqui, um sinal de que a Gabriela veio, mas não veio por nada, só pra roubar oxigênio alheio e poluir mais o planeta, sabe.
Talvez seja por essa vontade de querer fazer algo, mudar, construir, ajudar, que eu não me contente em ser só eu. E por isso mesmo ser uma brilhante jornalista paulista, gostosona ou gorda, descolada, editora da super revista qualquer coisa, rica e sozinha não serviu bem pra mim. Porque desse jeito ia ser só eu.
Não acho ruim que existam grandes jornalistas gostosonas, descoladas e todas essas coisas. Cada um se percebe de uma maneira, cada um sabe que é útil e que faz a diferença (ou não) em algum lugar.
Mas eu não cabia ali e continuo não cabendo nesse padrão high-society mega feliz, sou das vodkas caras e dos cabelos cada vez mais tingidos e claros, dos amigos sempre reunidos num lugarzão bacana ouvindo qualquer coisa que seja 'cool'.
Se você, elas ou eles se percebem assim, ok, vão em frente, se faz bem, que bom, mas que não faça mal.
Eu não quero passar minha vida sabendo que eu não fiz nada de útil pra alguém, que eu não ajudei uma pessoa sequer a ter uma visão mais bonita do mundo, sem ser lembrada com carinho por alguma coisa útil que eu fiz. Eu não quero ser uma estátua numa praça, nem espero gratidão eterna pelo amor que eu doou para as pessoas que passam pela minha vida, mas eu só quero ser mais sólida e menos solúvel do que tanta gente que eu vejo por aí, vagando só o corpo e a etiqueta, com um coração sem nada, batendo pelo próximo lançamento da Apple. Eu já fui solúvel demais, agora é tempo de mudar.
Eu tenho uma vida confortável. Se não tivesse, talvez não estivesse aqui, sentadinha, cheirosa depois de um banho quentinho, escrevendo no meu computador sobre isso. Não quero ser hipócrita, eu só queria um pouco mais de vida, de cor, de pessoa, de humanidade por aí.
É tudo tão rápido, fácil, líquido, não dói, não precisa mastigar, entrega em todo o Brasil sem frete, não precisa sair de casa pra nada.
Ok, é o conforto, tecnologia, as pessoas  gostam, eu também, especialmente quando é entrega em todo o Brasil sem frete, mas será que as pessoas em si precisam ser sempre assim?
Eu nunca curti muito Pink Floyd, mas as vezes eu acho que eu estou dentro do "Another brick in the wall", vendo meninas cada vez mais altas, com saltos cada vez mais altos e ridículos, se equilibrando numa personalidade que não existe, com cabelos cada vez mais lisos e loiros, roupas cada vez mais curtas, celulares, iQualquercoisa nas mãos, na orelha, no braço e... bom, cada vez mais artificiais, levando vidas artificiais, crescendo mulheres felizes, mas ainda sim, artificiais, um bando de carne moida de segunda, que se juntar dez, não dá um hamburguer decente.
As vezes eu me sinto meio envergonhada por ter quase 21 anos e ainda gostar de brincar de faz de conta, de ser o Capitão Gancho enquanto meus primos e minha irmã correm como Meninos Perdidos no quintal da minha casa, rindo e quando caímos na grama, ainda sim, tudo aquilo é real.
Eu não me acho melhor que ninguém por gostar de crianças, nem todo mundo precisa ser assim, como eu. Não quero que as pessoas sejam iguais a mim, Deus me livre um monte de Gabriela por aí. De mim já basta eu...
Tem gente que se percebe melhor trabalhando com computadores, outros com construções, propagandas, idosos, animais... Mas poxa, essa gente toda cresceu e daí? A gente vai ser assim, cresceu vira café solúvel, perde a graça de esperar a água ferver, o coador escurecer, o cheiro subir, a garrafa fechar. Vai ser tudo assim? Pra sempre?
Eu só queria voltar a ver mais crianças nos adultos, mas não uma infantilidade irresponsável, mas crianças como éramos e como devíamos ser para o resto de nossas vidas.

                                                             A Terra do Nunca é aqui....

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Emma e o menino Jesus

E assim retornou, Emma, ultrajada e vilã. A senhorita de todas as discórdias e ainda ouso dizer que não há vítimas em nenhuma história, senhoras e senhores. O vilão é um incompreendido, um caso mal contado. Por que a bruxa se tornou má? Somos todos ruins em essência?
Recuperou-se aos haustos, respirando com gosto ainda amargo na boca. Esses medicamentos e agulhas, por Deus, a medicina poderia doer menos e ter um gosto mais agradável, talvez menos doce. Estômago é para os fortes da vida. Ofendida nas fibras mais íntimas, recém nascida, renascida.
 No quarto de Madame Bovary não há nada mais que lhe pertença. Talvez haja uma oração, assim como há um lugar nas preces dela para todos aqueles que a fizeram chorar. Rezou, dias e as noites mal dormidas. Pediu paz para seu próprio espírito. Que o perdão lhe viesse a galope, nas asas de um cavalo alado, trazido por um anjo bom. Que o menino Jesus pudesse lhe sorrir, quando se sentia a última das condenadas. Não era ruim, mas disseram-lhe que era perversa, mal amada e irresponsável.
O menino Jesus chegou. Acolheu Emma nos braços. Ela chorou sentidas preces nos braços Dele. Ele sabia, não havia culpa naquele coração, nunca houvera maldade ou inconsequência, só uma menina assustada, tentando acordar de seus temíveis pesadelos. Confessara crimes sem tê-los cometido. Era a inquisição para ela. Chorou sua fraqueza, pediu para que Ele jamais a abandonasse.
Em seus momentos mais dolorosos, foi Jesus quem segurou Emma nos braços, que enxugou-lhe as lágrimas, que pediu calma e perdão. Nas últimas noites, mal dormidas por conta do mal estar orgânico, das infecções na garganta e do cheiro ruim que sua própria boca exalava, Emma rogou ao menino Jesus. Instantes depois, adormeceu como um anjo.
O menino Jesus havia saído, confiante na boa recuperação de Emma. Atrás da moça risonha, havia uma mulher calma e serena, atrás dos gritos e choros, havia paz, havia confiança.
Emma acordou. Havia sonhado com Jesus. Sorriu para si mesma a primeira noite dormida com mais tranquilidade. No sonho, Jesus ainda se fazia menino. Uma criança entende a outra. Sentiu-se calma e orou por todos aqueles que só veem maldade, problemas e mágoas. Aqueles que as palavras rudes tornam-se flechas lancinantes, rasgando corações, trazendo a culpa maléfica ao espírito, o arrependimento doentio, sem nada a acrescentar. Pediu que sempre pudesse haver brandura nas palavras, especialmente nas dela, pediu que o menino Jesus, que via na mulher Emma a menina que ainda era e sempre seria, pudesse guiar os passos de todos aqueles que a fizeram chorar. E que Emma jamais fosse motivo de choro ou ranger de dentes entre as pessoas. Dos erros, já bastavam os do passado.
Emma agradeceu a Jesus mais uma vez e dormiu sem ter nenhum pesadelo. Nunca mais.

sábado, 11 de agosto de 2012

Sobre camarões, sobrancelhas e a saudades que eu tenho dela

Vi os camarões e me lembrei dela. Impressionante como lembro dela toda vez que vejo camarões.
Eles pareciam os maiores vilões da etiqueta pra uma moçoila do interior como eu naquele tempo, até que apareceu ela e amável como uma mãe, me disse:
"Vou te ensinar como me ensinaram um dia..."
E hoje, pode vir o monstro do mar que eu estraçalho ele com classe.rs...
Por falar em mãe, ela foi uma mãe pra mim. Todo cuidado que ela teve comigo, todo amor que ela me deu foram marcas que estão acesas até hoje no meu coração.
Hoje olhei pras minhas sobrancelhas e me lembrei do dia que ainda no apartamento de antes, ela olhou pra mim, na hora do almoço e arrumou minhas sobrancelhas. Sorriu como quem consegue descobrir o enigma da Esfinge, um sorriso de menina que ela tem e me disse:
" Olha só, você tem que pentear elas pra cima, a moça que faz as minhas que me ensinou. Depois eu te mostro melhor".
E mostrou.  Não só como arrumar as sobrancelhas, mas tanta coisa bonita, leve, que carrego comigo como jóias preciosas que ganhei dela.
Ela me disse uma vez:
" Quando você for casar, eu vou levar você lá pra ela arrumar a sua sobrancelha também."
Não casei. Nem com ele, nem com ninguém. Mas se um dia eu me casar, será que ela vai me levar lá ainda?
Poucas pessoas marcaram minha vida como ela.
Dentre as recordações, lembro-me do dia, que me afoguei em lágrimas no colo dela. Chorei sentido, daquele choro que a gente só chora no colo da mãe da gente. Ela tinha o colo macio e a respiração calma, como toda mãe deve ter.
As vezes penso que devia ter ido ao encontro dela, mesmo quando a vida quis que nos separássemos. Mas hoje eu vejo que talvez eu fosse sofrer mais, quando chegasse alguma outra moça e eu tivesse que ceder meu lugar no coração dela, assim, de repente.
Foi duro ficar longe dele, eu pensei. Mas passou.
Mas ficar longe dela, até hoje, é algo que me dói.
Queria que ela fosse minha tia, uma parente, qualquer coisa que o sangue nos unisse, pra eu ter sempre uma desculpa sadia pra correr pro abraço dela, conversar, falar até não poder mais e matar a saudade que eu sinto dela, todas as vezes que penso que nunca mais seremos próximas como antes.
Dele, ficou a lembrança. Mas é dela que eu tenho saudades.
Tive mulheres igualmente boas em minha vida, que também guardo com carinho em meu coração. Todas elas foram boas pra mim.
Mas existem pessoas que ultrapassam a barreira do especial. Pessoas que vão viver em nossos corações o resto da vida e que vão ficar lá, cutucando a gente de saudade pra sempre.
Fazia tempo que eu estava ensaiando pra escrever sobre ela. Tive medo, não quis parecer entrona, não queria buscar um holofote pra mim, aparecer depois de tanto tempo. Mas quando fala o coração, eu escuto.
E hoje ele me disse: que saudades da Ana Alice!

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Barquinho na correnteza...

Sentou no sofá frio da varanda. Estava longe dele. Muitos passos, gasolina, quilômetros rodados, ônibus e carros. Entristeceu com as últimas palavras dele " não dá pra gente ficar assim, tão distante, eu queria poder estar mais tempo com você."
Nasceu um espinho naquela rosa. Cutucou por dentro, doeu, lamentou-se.
Pegou o livro. Caio Fernando de Abreu. Era ele quem a consolava. Poeta póstumo, boêmio, amante entristecido.
Abriu naquele velho texto. Velhas manias solitárias. Leu ele todo, mais uma vez. Ficou com o livro aberto no colo, olhar perdido no horizonte frio da fazenda, pensando longe, há quilômetros de tudo aquilo.
Havia escrito na porta de seu armário " Relaxa e flui, baby: barquinho na correnteza, Deus dará."
Mas nunca tinha sentido o real sentido dessa frase, apesar de gostar tanto dela que a via todos os dias, ao abrir a porta do armário de madeira maciça, cheio de frases de adolescente por ele todo.
Pensou nele. Na frase. Teve uma grande ideia. Ia cortar a distância, apaziguar a saudade com um pedaço de papel.
Pegou algumas folhas, caneta e deixou o Caio Fernando ao lado.
Traçou sua letra mais bonita e escreveu:

" Murilo,
certa vez um poeta disse "Relaxa e flui, baby: barquinho na correnteza, Deus dará".
Não posso quebrar os quilômetros que nos separar e nem quero deixar tudo aquilo que me prende a Minas, você sabe. Mas busquei no recôndito do coração uma maneira de suavizar a saudade. A partir de hoje, escreverei todos os dias pra você. Nem que seja apenas uma frase. Todas as folhas virarão barquinhos, e quando nos encontrarmos, entregarei a você todos os barquinhos que fiz. Assim, a cada dia da semana, depois do nosso encontro, você abre um barquinho e lê. Estaremos mais próximos, em pontos distantes do rio, mas na mesma correnteza. E se faltarem barquinhos, a gente dá um jeito.

Esse primeiro texto que lhe escrevo é do meu escritor preferido, Caio Fernando de Abreu, desses paulistas interessantes como você. Sempre gostei muito desse texto, mas nunca encaixou com ninguém, assim como se encaixa com você. Espero que goste.
Com saudades, Luiza.

Caio Fernando Abreu - Pálpebras de Neblina
Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, ou até um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar. Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: "Não digas 'Eu sofro'. Que é que dentro de ti és tu? / Que foi que te ensinaram/ que era sofrer ?" Mas não conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia - coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban - filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia Tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto de alguém que me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi então que a vi. Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega - aqueles da Augusta-cidade, não Augusta-jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada sutil, puro lugar comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro, na esquerda um copo de cerveja.E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar - exposta, imoral, escandalosa - sem se importar que a vissem sofrendo. Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para a própria dor que estava, também, meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas de cada dia - uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos. Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que ridícula a minha, dor de brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando mais leve. Mas só quando cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando, além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil 87: explorado, humilhado, pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do boteco vagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela prostituta? Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo? Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu me esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu "dói tanto", contei da moça vadia chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou "porquê?", compreendi ainda mais. Falei: "Porque é daí que nascem as canções". E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?".

Copiou o texto todo, dobrou e primeira folha do seu brilhante plano apaziguador de saudades e transformou-o num barquinho.
Em quinze dias eram quinze barquinhos. Poemas, versos, desabafos, contos.
Quando se reencontraram, Luiza apareceu com uma caixa de sapatos, encapada de papel vermelho e muitos barquinhos dentro dela.
Murilo sorriu. Era o que ela esperava.



sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Silêncio convidativo da noite

Eu ia convidar você para ir ao cinema. O cinema é sempre uma coisa íntima, que a gente leva só quem suporta o silêncio da gente. Só quem suporta estar perto sem falar, sem conversar, só pelo simples prazer em estar perto. Pelo menos eu penso assim.
Abri as portas, retirei algumas trancas, mas nem todas. Eu aprendi a me cuidar pra não deixar a minha casa ser invadida, revirada e depois eu ficava ali, sozinha com a bagunça que alguém que entrou e depois saiu, deixou.
Mas há sempre alguma coisa atrás dessa minha intuição capciosa. Nem sempre descubro coisas boas, mas é sempre algo que eu previa e brinco comigo mesma que sou cigana. Que triste sorte dessa cigana, pensei.
Mas não foi algo que tenha sido descoberto, porque presumo que não havia nada para encobrir, mas foi indigesto.
Nesse instante pensei que não queria mais ir ao cinema com você. Que ficar em silêncio depois disso podia ser constrangedor pra mim. Não gosto de tentativas de reparação por uma coisa que podia ter sido evitada. Troquemos os lados, como seria se fosse você? Veja bem, não estou fazendo tempestade em copo d'água, mas você é livre pra voar, ninguém nunca ousou lhe prender aqui.
Fico pensando nessa coisa do necessário. Tinha necessidade disso? Você precisava disso? Não que seja algo sério, mas é uma pergunta que eu me fiz o dia todo enquanto pensava nisso.
Não acho que tivesse necessidade. Se a gente está feliz com a paisagem frente aos nossos olhos, não tem porque buscar outras janelas e dizer depois "Paisagens vãs não significam mais nada pra mim".
Não diga, se você não faz.
Não se comprometa com palavras, gestos e carinhos.
Eu sou uma flor rara, que se abre discreta, em raras oportunidades para o beija-flor, mas que ao menor descuido se fecha abruptamente, privando o pássaro daquele cheiro primaveril.
Pensei, repensei. Se fosse num outro momento da minha vida, eu já teria chorado.
Mas hoje as minhas lágrimas custam mais a cair. Alguém me disse que elas valiam muito mas que meu sorriso valia mais.
Preservo o sorriso, apesar do descontentamento.
Como são frágeis os sentimentos humanos. Recolho-me na neblina dos pensamentos, imaginando se eu ainda poderia ser meu próprio Sol e dissipar sozinhas essas más impressões. Não há respostas, apenas o silêncio convidativo da noite.
De desgosto em desgosto a gente pode até perder o gosto...
Vou ao cinema sozinha.

Espelho embaçado

Fechou a porta do banheiro. Fazia tempo que não fazia isso. E muito embora morasse sozinha, quis fechar a porta pra tomar banho.
Deixou o chuveiro ligado por dois minutos sem ao menos entrar nele. Desperdício de água, excesso de pensamentos.
Ficou parada, frente ao espelho, mas não era para si que olhava. Nuvens de pensamentos e ideias passaram rápidas como a primavera. Mas não haviam tantas flores assim.
Não é que estivesse fechada. Até conseguia se relacionar e vez ou outra brindava por isso. Mas manter os dois pés atrás já não era mais um plano B para se manter longe das decepções. Manter os dois pés atrás era o novo preto do armário. Sua nova realidade. Maria mantinha os dois pés atrás, muito embora já tivessem tentado puxá-la para dentro.
E não adiantavam flores, confiança, juras. Os pés atrás eram melhor do que na frente, assim não corria o risco de ninguém pisar em sua unha encravada. 
Bem ou mal, ela estava achando muito mais fácil viver assim e sentia-se satisfeita por conseguir não sentir mais ciúmes descomunais, separar as coisas . Com a mesma facilidade que gostava, não se feria. Tudo depois dos dezesseis anos era extremamente mais difícil. Já tinha ficado com os pés a frente, confiado demais, se entregado demais, por completa, mas agora, por mais que houvesse a entrega, ao fim dela, Maria era dela mesma.
Olhou-se um pouco, sentiu alegria e tristeza.
Nunca mais seria de ninguém. Sempre seria dela. Mas pensou que sempre devia ter sido assim, desde o começo. Porque ela cuidava melhor de si do que ninguém. E podia até namorar mais algumas vezes, podia noivar e se casar. Ainda acreditava no amor. 
Mas prezava por sua segurança emocional, tantas vezes abalada. E não adiantava dizer que um não era igual ao outro, porque as situações se repetem e ela sabia como reagia ao ciúmes, a mágoa, a decepção. A questão não eram eles. A questão tinha cinco letras, nome de madona, santificada e serena: Maria.
Sua serenidade, sua paz de espírito, seu conforto emocional. Isso era saúde. E Maria se preocupava muito com a saúde. 
Alguns deles se decepcionaram ao constatar isso. "Você não está inteira", disse um deles enquanto certificava-se que não poderia conter-se perto da iminência de perdê-la sem ao menos tê-la tido para si. Ela olhava ao redor e sua sinceridade amável, soava cruel para ouvidos apaixonados.
- Entenda que não é assim. Podemos estar juntos, mas quando estamos juntos. Eu ainda sou eu. Se você me acrescenta, ótimo. Mas não queira uma simbiose da minha parte. Essa é minha maneira de estar inteira. Não vou dosar minhas palavras, não vou me forçar a gostar de você. Se as coisas tiverem que ser, elas serão, com um ou dois pés atrás.
- Sua indiferença é cruel.
- Não é indiferença, é honestidade. Eu não minto mais. Muito menos pra mim mesma.
Foi interrompida de suas lembranças quando percebeu que o vapor da água quente já havia tomado conta do banheiro todo. Não via-se mais no espelho embaçado. Já era hora de parar de pensar nisso. Despiu-se e entrou com os dois pés. É, Maria era dela e só o chuveiro poderia tê-la com os dois pés a frente. Entrou de cabeça na água quente. Setembro já estava no fim.