sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Espelho embaçado

Fechou a porta do banheiro. Fazia tempo que não fazia isso. E muito embora morasse sozinha, quis fechar a porta pra tomar banho.
Deixou o chuveiro ligado por dois minutos sem ao menos entrar nele. Desperdício de água, excesso de pensamentos.
Ficou parada, frente ao espelho, mas não era para si que olhava. Nuvens de pensamentos e ideias passaram rápidas como a primavera. Mas não haviam tantas flores assim.
Não é que estivesse fechada. Até conseguia se relacionar e vez ou outra brindava por isso. Mas manter os dois pés atrás já não era mais um plano B para se manter longe das decepções. Manter os dois pés atrás era o novo preto do armário. Sua nova realidade. Maria mantinha os dois pés atrás, muito embora já tivessem tentado puxá-la para dentro.
E não adiantavam flores, confiança, juras. Os pés atrás eram melhor do que na frente, assim não corria o risco de ninguém pisar em sua unha encravada. 
Bem ou mal, ela estava achando muito mais fácil viver assim e sentia-se satisfeita por conseguir não sentir mais ciúmes descomunais, separar as coisas . Com a mesma facilidade que gostava, não se feria. Tudo depois dos dezesseis anos era extremamente mais difícil. Já tinha ficado com os pés a frente, confiado demais, se entregado demais, por completa, mas agora, por mais que houvesse a entrega, ao fim dela, Maria era dela mesma.
Olhou-se um pouco, sentiu alegria e tristeza.
Nunca mais seria de ninguém. Sempre seria dela. Mas pensou que sempre devia ter sido assim, desde o começo. Porque ela cuidava melhor de si do que ninguém. E podia até namorar mais algumas vezes, podia noivar e se casar. Ainda acreditava no amor. 
Mas prezava por sua segurança emocional, tantas vezes abalada. E não adiantava dizer que um não era igual ao outro, porque as situações se repetem e ela sabia como reagia ao ciúmes, a mágoa, a decepção. A questão não eram eles. A questão tinha cinco letras, nome de madona, santificada e serena: Maria.
Sua serenidade, sua paz de espírito, seu conforto emocional. Isso era saúde. E Maria se preocupava muito com a saúde. 
Alguns deles se decepcionaram ao constatar isso. "Você não está inteira", disse um deles enquanto certificava-se que não poderia conter-se perto da iminência de perdê-la sem ao menos tê-la tido para si. Ela olhava ao redor e sua sinceridade amável, soava cruel para ouvidos apaixonados.
- Entenda que não é assim. Podemos estar juntos, mas quando estamos juntos. Eu ainda sou eu. Se você me acrescenta, ótimo. Mas não queira uma simbiose da minha parte. Essa é minha maneira de estar inteira. Não vou dosar minhas palavras, não vou me forçar a gostar de você. Se as coisas tiverem que ser, elas serão, com um ou dois pés atrás.
- Sua indiferença é cruel.
- Não é indiferença, é honestidade. Eu não minto mais. Muito menos pra mim mesma.
Foi interrompida de suas lembranças quando percebeu que o vapor da água quente já havia tomado conta do banheiro todo. Não via-se mais no espelho embaçado. Já era hora de parar de pensar nisso. Despiu-se e entrou com os dois pés. É, Maria era dela e só o chuveiro poderia tê-la com os dois pés a frente. Entrou de cabeça na água quente. Setembro já estava no fim.

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