segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Barquinho na correnteza...

Sentou no sofá frio da varanda. Estava longe dele. Muitos passos, gasolina, quilômetros rodados, ônibus e carros. Entristeceu com as últimas palavras dele " não dá pra gente ficar assim, tão distante, eu queria poder estar mais tempo com você."
Nasceu um espinho naquela rosa. Cutucou por dentro, doeu, lamentou-se.
Pegou o livro. Caio Fernando de Abreu. Era ele quem a consolava. Poeta póstumo, boêmio, amante entristecido.
Abriu naquele velho texto. Velhas manias solitárias. Leu ele todo, mais uma vez. Ficou com o livro aberto no colo, olhar perdido no horizonte frio da fazenda, pensando longe, há quilômetros de tudo aquilo.
Havia escrito na porta de seu armário " Relaxa e flui, baby: barquinho na correnteza, Deus dará."
Mas nunca tinha sentido o real sentido dessa frase, apesar de gostar tanto dela que a via todos os dias, ao abrir a porta do armário de madeira maciça, cheio de frases de adolescente por ele todo.
Pensou nele. Na frase. Teve uma grande ideia. Ia cortar a distância, apaziguar a saudade com um pedaço de papel.
Pegou algumas folhas, caneta e deixou o Caio Fernando ao lado.
Traçou sua letra mais bonita e escreveu:

" Murilo,
certa vez um poeta disse "Relaxa e flui, baby: barquinho na correnteza, Deus dará".
Não posso quebrar os quilômetros que nos separar e nem quero deixar tudo aquilo que me prende a Minas, você sabe. Mas busquei no recôndito do coração uma maneira de suavizar a saudade. A partir de hoje, escreverei todos os dias pra você. Nem que seja apenas uma frase. Todas as folhas virarão barquinhos, e quando nos encontrarmos, entregarei a você todos os barquinhos que fiz. Assim, a cada dia da semana, depois do nosso encontro, você abre um barquinho e lê. Estaremos mais próximos, em pontos distantes do rio, mas na mesma correnteza. E se faltarem barquinhos, a gente dá um jeito.

Esse primeiro texto que lhe escrevo é do meu escritor preferido, Caio Fernando de Abreu, desses paulistas interessantes como você. Sempre gostei muito desse texto, mas nunca encaixou com ninguém, assim como se encaixa com você. Espero que goste.
Com saudades, Luiza.

Caio Fernando Abreu - Pálpebras de Neblina
Fim de tarde. Dia banal, terça, quarta-feira. Eu estava me sentindo muito triste. Você pode dizer que isso tem sido freqüente demais, ou até um pouco (ou muito) chato. Mas, que se há de fazer, se eu estava mesmo muito triste? Tristeza-garoa, fininha, cortante, persistente, com alguns relâmpagos de catástrofe futura. Projeções: e amanhã, e depois? e trabalho, amor, moradia? o que vai acontecer? Típico pensamento-nada-a-ver: sossega, o que vai acontecer acontecerá. Relaxa, baby, e flui: barquinho na correnteza, Deus dará. Essas coisas meio piegas, meio burras, eu vinha pensando naquele dia. Resolvi andar. Andar e olhar. Sem pensar, só olhar: caras, fachadas, vitrinas, automóveis, nuvens, anjos bandidos, fadas piradas, descargas de monóxido de carbono. Da praça Roosevelt, fui subindo pela Augusta, enquanto lembrava uns versos de Cecília Meireles, dos Cânticos: "Não digas 'Eu sofro'. Que é que dentro de ti és tu? / Que foi que te ensinaram/ que era sofrer ?" Mas não conseguia parar. Surdo a qualquer zen-budismo, o coração doía sintonizado com o espinho. Melodrama: nem amor, nem trabalho, nem família, quem sabe nem moradia - coração achando feio o não-ter. Abandono de fera ferida, bolero radical. Última das criaturas, surto de lucidez impiedosa da Big Loira de Dorothy Parker. Disfarçado, comecei a chorar. Troquei os óculos de lentes claras pelos negros ray-ban - filme. Resplandecente de infelicidade, eu subia a Rua Augusta no fim de tarde do dia Tão idiota que parecia não acabar nunca. Ah! como eu precisava tanto de alguém que me salvasse do pecado de querer abrir o gás. Foi então que a vi. Estava encostada na porta de um bar. Um bar brega - aqueles da Augusta-cidade, não Augusta-jardins. Uma prostituta, isso era o mais visível nela. Cabelo malpintado, cara muito maquiada, minissaia, decote fundo. Explícita, nada sutil, puro lugar comum patético. Em pé, de costas para o bar, encostada na porta, ela olhava a rua. Na mão direita tinha um cigarro, na esquerda um copo de cerveja.E chorava, ela chorava. Sem escândalo, sem gemidos nem soluços, a prostituta na frente do bar chorava devagar, de verdade. A tinta da cara escorria com as lágrimas. Meio palhaça, chorava olhando a rua. Vez em quando, dava uma tragada no cigarro, um gole na cerveja. E continuava a chorar - exposta, imoral, escandalosa - sem se importar que a vissem sofrendo. Eu vi. Ela não me viu. Não via ninguém, acho. Tão voltada para a própria dor que estava, também, meio cega. Via pra dentro: charco, arame farpado, grades. Ninguém parou. Eu, também, não. Não era um espetáculo imperdível, não era uma dor reluzente de néon, não estava enquadrada ou decupada. Era uma dor sujinha como lençol usado por um mês, sem lavar, pobrinha como buraco na sola do sapato. Furo na meia, dente cariado. Dor sem glamour, de gente habitando aquela camada casca grossa da vida. Sem o recurso dessas benditas levezas de cada dia - uma dúzia de rosas, uma música de Caetano, uma caixa de figos. Comecei a emergir. Comparada à dor dela, que ridícula a minha, dor de brasileiro-médio-privilegiado. Fui caminhando mais leve. Mas só quando cheguei à Paulista compreendi um pouco mais. Aquela prostituta chorando, além de eu mesmo, era também o Brasil. Brasil 87: explorado, humilhado, pobre, escroto, vulgar, maltratado, abandonado, sem um tostão, cheio de dívidas, solidão, doença e medo. Cerveja e cigarro na porta do boteco vagabundo: carnaval, futebol. E lágrimas. Quem consola aquela prostituta? Quem me consola? Quem consola você, que me lê agora e talvez sinta coisas semelhantes? Quem consola este país tristíssimo? Vim pra casa humilde. Depois, um amigo me chamou para ajudá-lo a cuidar da dor dele. Guardei a minha no bolso. E fui. Não por nobreza: cuidar dele faria com que eu me esquecesse de mim. E fez. Quando gemeu "dói tanto", contei da moça vadia chorando, bebendo e fumando (como num bolero). E quando ele perguntou "porquê?", compreendi ainda mais. Falei: "Porque é daí que nascem as canções". E senti um amor imenso. Por tudo, sem pedir nada de volta. Não-ter pode ser bonito, descobri. Mas pergunto inseguro, assustado: a que será que se destina?".

Copiou o texto todo, dobrou e primeira folha do seu brilhante plano apaziguador de saudades e transformou-o num barquinho.
Em quinze dias eram quinze barquinhos. Poemas, versos, desabafos, contos.
Quando se reencontraram, Luiza apareceu com uma caixa de sapatos, encapada de papel vermelho e muitos barquinhos dentro dela.
Murilo sorriu. Era o que ela esperava.



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