quarta-feira, 17 de abril de 2013

Lembranças da sala vazia

Passou os olhos pela sala. Nada de móveis, nada de televisão, nada de nada. A sala, antes o refúgio preferido, era agora apenas um cômodo vazio, cheio de caixas e lembranças inapagadas.
Era melhor sair de lá mesmo, o psicanalista tinha razão. "Conviver com o luto de uma pessoa viva só está prejudicando você". O psicanalista era a salvação da lavoura, apesar de muitas vezes detestá-lo, tinha um apego imenso aquela criatura nada simpática e que repetia sempre "você não pode depender de mim pra tudo".
Fazia oito meses que estava fazendo psicanalise. A ideia veio de um amigo que não suportava mais vê-lo destruído sentimentalmente pelos cantos. Dois meses de chororô e ele decidiu seguir o conselho do amigo. Estava surtindo efeito.
Com o olhar de quem enxerga lembranças, recordou-se de tudo o que viveram naquele apartamento simpático nas proximidades do Klabin. Parecia que o riso dela ecoava ainda mais alto com tudo aquilo vazio. Lembrou dela de camisola de ursinho, cabelo preso num coque alto e os óculos de lentes grande na mão. Andando sempre procurando algo. Ela perdia tudo em todos os lugares. Revirava o mundo, depois achava do nada. Era um hábito. Todo dia ela perdia alguma coisa. 
Ela gostava de cozinhar as receitas da avó, que era natureba porque tinha feito parte do movimento hippie. Ir a feira era a diversão dela, mas as feiras de São Paulo não são tão calorosas quanto a da minha cidade, ela sempre dizia.
Toda sexta era dia de alguma coisa ao funghi, ou panquecas integrais sem leite, apesar dela não dispensar um chocolate quente. Lembrou-se de como ela se jogava no sofá, com os pés pra cima, dizendo que não tinha nascido pra andar de salto, sempre que voltavam de uma festa.
Lembrou-se do choro e de quando ele ganhou espaço na rotina. Das vezes que ela saia do banho e ele sabia que ela tinha chorado. Ele fazia de conta que não via, sabia que estava errado. Trabalhava demais sem muito resultado. Fazia escalas que pareciam infinitas. Fim de mês era um perrengue.  E a frase que ela mais dizia era, " Você prometeu que a gente ia ficar um ano aqui só, e que depois a gente ia se mudar pro interior, lembra? Eu não vou sobreviver muito tempo aqui, esse lugar não é pra mim".
E não sobreviveu mesmo. Flores raras como ela murcham com o excesso de fumaça e a ausência de carinho, de calor humano, de amor. Ela reclamava da falta de atenção dele e ele levantava o tom de voz dizendo que ela não dava espaço pra ele, que ele se sentia pressionado.
Até que um dia ele chegou, ela estava sentada na mesa da cozinha, uma mesa improvisada, com uma caneca de chá de canela. Os olhos vermelhíssimos e a voz dura. "Senta aqui".
E aquela foi a última conversa que tiveram. Ela disse que ia embora, que ia morar na casa da avó de novo, que São Paulo ia envenená-la de decepção e a frieza dele ia terminar de matá-la. Queria uma vida melhor, mais amor, mais carinho, presença, queria se sentir importante de fato, se sentia uma intrusa na vida dele de ganhar dinheiro a qualquer custo. Queria trabalhar no que gostava, o pequeno museu da cidade e as aulas de História iam ajudar. Aquele colégio no Ipiranga não era sua praia. Queria a tranquilidade de um amor companheiro, os desafios da lida diária, não brigas e gelos consecutivos sob o mesmo teto.
Quando percebeu, estava chorando. Lágrimas abundantes e doloridas. Nada doía mais que a ausência dela. Nada doía mais saber que ela o amara, que lutara com todas as forças pra trazê-lo pra perto, pra lhe mostrar o valor das coisas simples da vida. Ele a teve em seus braços, tinha o coração dela nas mãos. Mas hoje, tinha só um eco no peito, um vazio no apartamento e as lembranças por toda parte. Chamou o elevador, enfiou as caixas nele. Apertou o "T" e desceu chorando. A vida ia ser muito mais difícil sem ela. 



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