quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Balas de iogurte

Estava cansada demais para prestar atenção no ambulante que, resignadamente, oferecia balas para quem acreditasse que ele era apenas um pai de família que tentava por comida na mesa. Até que os olhares se cruzaram e contato visual é uma coisa que prende a gente. Ela observou-o, olhos cansados de quem dormiu mal e pouco, sulcos num rosto envelhecido pelas rudes provas da vida e uma humildade imensa, que o ajudava a segurar seus saquinhos de balas de iogurte com toda dignidade que ainda lhe restava. Ela sorriu. Ele sorriu de volta. E por um instante pensou que era uma tremenda egoísta. O moço percebeu e disse:
- Tem problema não dona, só o sorriso da senhora valeu já.
Num instante, enfiou as mãos na bolsa e tirou de lá uma nota de cinco reais. Providencialmente esquecida fora da carteira para uma situação como essa.
Entregou a nota para o moço das balas, que sorriu constrangido, enquanto ela levantava-se para descer no próximo ponto, sorrindo de volta.
- Ih, moço, meu sorriso não vale muita coisa, não...
O ônibus parou e ela desceu.
- Deus te abençoe, moça.
- Amém.
A cidade se agitava e já passavam das sete da noite. Ela caminhava com algum peso no coração. Tinha um emprego que não fizera muitos sacrifícios para adquirir, o pai tinha bons contatos, e muito embora não fosse o emprego dos sonhos dela, lhe provia o necessário para gastar com suas futilidades. Tinha um apartamento seu, ignorava a palavra aluguel ou dívidas, pois tinha luz, água e tinha uma cama pra lá de confortável. Aos finais de semana, saía em qualquer bar mais requisitado mostrar seu poder aquisitivo para um bando de amigos desleais, que não costumavam ligar nos domingos de ressaca para ver um filme, ou conversar sobre qualquer coisa mais sólida. Tinha um carro que, naquele dia, ficara na garagem por conta do rodízio, por isso fora forçada a andar de ônibus e se deparar com a constrangedora figura do pai de família que vende balas nos ônibus para sustentar uma vida digna.
Solidez. Sentia-se vivendo uma vida de areia, onde os sonhos desmoronavam dia após dia. Mas a quem culpar?
A culpa era sua. E do seu egoísmo que a fazia transportar nas costas frágeis de valores mais íntegros sonhos fúteis e com prazo de validade.
A lágrima presa nos olhos se jogou pra dentro do luxuoso apartamento assim que ela abriu a porta. Sem se lembrar direito, como entrou e trancou a porta, jogou-se no sofá, enquanto uma enxurrada de decepções consigo mesma escapava-lhe pelos olhos. Depois de chorar o tanto que precisava, debruçou-se na varanda e ficou olhando o movimento. Mais adiante viu ele, o vendedor de balas de iogurte, encontrar uma mulher com uniforme branco, aparência cansada, mas um imenso sorriso no rosto. Ela segurava pelas mãos uma linda menina de cabelos encaracolados com uniforme de alguma escola ou creche. O vendedor abraçou as duas e retirou do bolso um pacotinho de balas que foi recebido com abraços e beijos pela garotinha.
No ponto de ônibus, os três conversavam sobre algo que lhes faziam sorrir, enquanto a menininha, de mãos dadas com os dois saltitava ignorando toda rotina cansada que tivera seu paizinho, vendendo balas para moças egoístas e sua mãezinha, auxiliar de enfermagem que varava plantões para poder dar a filhinha uma vida mais digna, com estudo e o mínimo de conforto. O ônibus chegou lotado. Os casal se entreolhou com um sorriso forçado. O pai carregou a filhinha nos braços e a esposa sorria atrás, levando a mochila da pequena e toda resignação que uma alma boa tem em si.
Num instante, o apartamento no bairro nobre, o carro do ano, os amigos de bar, as noitadas, as maquiagens e roupas caras, as viagens internacionais, tudo virou cinza. Nada fez mais sentido.
Sentiu um imenso vazio. Olhou para as balas de iogurte caídas em cima da mesa. Tinha tudo, mas não tinha nada. E aquela família que a duras penas sobrevivia com dignidade na selva de pedra tinha muito mais. Amor. Era aquilo que lhe faltava.

Um comentário:

  1. Um traçar mais que real tua história.
    Um mundo correndo por nossos olhos e escrito à tantas mãos. Reconstruindo becos que fincaram no coração, saltando pontes e dificuldades impostas diariamente nessa nossa vida tão laboriosa, mas ainda assim, tão gratificante.


    Que fique o doce da bala no paladar que a vida insiste, mesmo em dias de chuva, nos sorrir com claridade de sol.

    Gabi,
    seu lugar me cativou.

    Beijo na alma,
    Sam.

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