segunda-feira, 4 de março de 2013

O pombo

Eu acordei sem poder abrir os olhos direito. Fiquei num coma mental forjado por mim mesmo pra entender o que estava acontecendo. Daí eu abri os meus olhos e vi que estava na casa do meu amigo. Mesmo assim forcei a memória umas três vezes pra me recordar de como tinha parado ali. Mas na quarta vez, foi como se eu fosse um pombo e uma bala tivesse acertado meu peito. Como uma ave frágil, senti os últimos segundos, o sangue parou na metade do meu estômago enquanto meu rosto perdia a coloração. Lembrei de tudo o que tinha acontecido no dia anterior, de como tinha parado ali, o motivo pelo qual minha cabeça doía, meu coração queria parar de bater e o porque eu me sentia atingido por uma bala.
Aos poucos, as imagens iam se desenhando vivas na minha mente e eu já começava a me arrepender por ter feito tanta força pra lembrar do que tinha acontecido.
Lembrei daquela garotinha linda, de olhos imensos. A bolinha dela veio rolando em direção aos meus pés. Eu abaixei e peguei. Ela sorriu na doçura de seus quatro anos. Aqueles olhos grandes de boneca me lembravam... Mas antes que eu pudesse concluir isso, uma voz cortou meu pensamento.
- Agradece o moço, Malú.
Então você sorriu. Era você. Continuava linda, como sempre.
- Oi, Pedro...
- Nossa, Elis, quanto tempo!
- Pois é...
Então você puxou a menina pela mão e disse.
- Agradeça o moço, Malú.
- Nossa, é sua irmã? Como ela tá grande!
Então você riu, levantou as sobrancelhas daquele jeito que você faz quando ouve uma pergunta idiota mas tenta ser gentil. Eu achando que íamos embarcar numa conversa sobre tudo que vivemos então você disse.
- É, Pedro. A minha irmã tá tão grande que tá com nove anos já...
Pensei um pouco, olhei pra menininha segurando a sua mão. Ela não podia ter nove anos. Tentei sorrir e perguntei na minha inocência.
- E quem é essa menina bonita?
- É minha filha, Maria Luiza.
Foi o tiro. O tiro no pombo e eu era o pombo. Nunca o sentido de uma frase doeu tanto. Tentei dissimular meu assombro, minha estupidez, tentei com um sorriso torto dizendo que ela era a sua cara. Mas não aguentei. Procurei qualquer vestígio e estava ali, o que eu precisava pra morrer. Uma imensa aliança dourada na sua mão esquerda. E pior do que isso, seu olhar brilhante, intenso, vivo e ele me dizia que você era feliz. Mãe, esposa e mulher. As três em uma, numa felicidade de dar gosto. Me contagiei por um instante, como se essa felicidade me pertencesse. Parecia que eu fazia parte daquilo. Em segundos me recuperei do choque e disse, inocente, como se eu soubesse da resposta.
- Você só tem ela?
- Não, tenho um menino de dois anos, o Júlio. Mas ficou em casa dormindo com o meu marido.
Outro tiro no pombo. Desferido cruelmente pelas suas palavras doces e gentis. Era você, dois filhos lindos, porque se a menina era linda, o menino devia ser também, e o sujeito pelo qual eu me arrepiava de ciúmes naquele instante: seu marido.
Sorri um sorriso amarelo, talvez vermelho pelo sangue fictício que eu imaginava subir pela minha boca naquele instante. Quando eu deixei você me escapar, quando fiz você chorar, quando achei que não te amava, nunca imaginei que um dia pudesse  encontrar  você tão linda, segurando sua filha Malú pela mão, falando do seu pequeno J[ulio, dizendo que ele estava com o seu marido com um imenso sorriso estampado no seu rosto sereno. Eu achava que o tempo não passaria e que um dia você me diria, "ei Pedro, eu senti sua falta, agora que você voltou podemos ficar juntos."
Mas não, Elis. Deixei você escapar. Deixei você partir sem perceber que eu perdia pra sempre a luz dos meus olhos e que agora era um imenso farol a irradiar sua luz pra sua família. Sim, essa família que não era a minha. O que eu tinha agora, Elis? Nada.
Você deve ser uma mãe maravilhosa, uma companheira incrível. E eu Elis, eu joguei fora aquele "nós" porque eu acreditava que seria "eu".
Em um segundo todas essas ideias povoaram minha mente, habitaram meu coração como hospedeiros invasivos e letais. Me sentia morrer a cada lembrança desse encontro. Via você se despedindo de mim, as mãozinhas da Malú me dando tchau e de como eu me enfiei num canto da padaria e bebi, até ligar pro Beto, chorando, pedindo por favor pra ele ir me buscar.
Disse a ele que você tinha atirado em mim. Ele não entendeu. E eu só fui entender depois, Elis, que na verdade, o responsável pelo pombo morto era eu. Fui eu que dei a arma na sua mão. E você disparou o seu sorriso, sua felicidade, com tudo aquilo que você merecia e eu não lhe dei. Hoje você é a rainha, Elis. E eu sou apenas um pombo morto. Morto por dentro, um zumbi de coração machucado e culpado por isso, andando por aí, pensando em tudo o que eu fiz, vivendo por viver, porque na verdade, eu já tinha morrido há muito tempo sem você.





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