terça-feira, 4 de janeiro de 2011

No divã de Clarice

Clarice chegara desanimada. Mais uma vez deparavasse com o estranho fantasma do desânimo. Tirou os sapatos e deitou-se no divã que havia na sua casa. Seu próprio divã, mas sem direito a um psicanalista que a ouvisse. Os devaneios de Clarice sobravam para ela mesma. Não havia ninguém capaz de ouví-la e compreendê-la. Nem mesmo aquele que Clarice havia dado seu coração numa bandeja.
Respirou fundo e conclui mais uma vez o que o fantasma do desânimo sempre a fazia concluir. Que não adiantava ser linda, educada, polida, amável, compreensiva, amante, interessante, interessada, disposta e ter tantos outros atributos quando o cidadão na sua frente é incapaz de lhe dar uma única rosa.
Não adiantava tentar ouvir a versão dele e como se não bastasse, tentar entender aquela situação estapafúrdia que sempre colocava Clarice em segundo plano. Ele, com a sua delicadeza e seu sorriso angelical cobravam de Clarice uma auto-confiança e uma lucidez que ela não tinha, mas matava um leão por dia pra alcançar esse Nirvana cobrado por ele.
Ele não pedia nada as claras, mas exigia dela a concentração de uma mulher bem resolvida, a certeza de uma Duquesa independente de um Duque, a firmeza e o sangue de barata que não existiam em Clarice.
Quantas e quantas vezes Clarice fez suas malas disposta a ir embora de uma vez por todas. Mas ao olhar aqueles olhos tão ternos, ela agia como uma criança desprotegida. Não, não podia deixá-lo. Uma força maior prendia Clarice aquele relacionamento mais enrolado que novelo de lã nas patas de um gato.
Clarice não tinha forças para carregar as malas para fora da casa. O pior é que ele parecia ser sincero, ele parecia gostar de Clarice, parecia gostar de verdade. Dizia palavras doces, tratava Clarice como se trata uma Princesa. Mas a incerteza era certa pra ela e todos aqueles fantasmas que assolavam a ele não davam a ela tanta segurança.
Por que era tão difícil desvencilhar-se do passado? Ele tinha uma decência com seu passado assustadora, mas o passado não fora nada decente com ele e não pensou duas vezes antes de lhe trazer lágrimas nos olhos. Fora egoísta e inconsequente.
E Clarice, amável e compreensiva como uma boa moça deve ser, tentava lhe mostrar um outro lado mais seguro, tentava lhe mostrar os jardins que existiam além daqueles lugares abandonados, mal cuidados, feios e cheios de flores murchas que ele estava acostumado a andar.
E Clarice pedia a ele dois minutos de seu tempo para que ele invertesse os papéis. E ele apenas dizia, " Eu sei". Mas não sabia, não sabia de nada. Não sabia como era estar numa corda-bamba, não sabia como era andar em cacos de vidro, não sabia como era andar na brasa e ainda sorrir todos os dias. Ele não aguentaria um dia na pele de Clarice. E também não enxergava o esforço que ela fazia para manter-se sóbria e não lhe dar seis tapas na cara, virar as costas e ir embora. Clarice lutava por aquele amor, ela sabia que um dia ele se libertaria de si mesmo. Mas quando o fantasma do desânimo a assombrava, ela questionava-se: quando?
Nos seus devaneios e indagações, Clarice adormeceu. Suas pálpebras, consumidas pelo desânimo, renderam-se ao anestésico da vida, o mais eficiente calmante que já inventaram: o sono.

Nenhum comentário:

Postar um comentário